sábado, 24 de setembro de 2011

NÃO TAPEMOS O SOL COM A MADEIRA

Algures no Atlântico, numa ilha com menos habitantes do que os do concelho de Gondomar, ou de Vila Franca de Xira, ou de Odivelas, ou de Famalicão, avançam os projectos de dois museus de arte contemporânea. A poucos quilómetros um do outro. Um deverá custar 13 milhões de euros. O outro está orçado em sete milhões. De caminho até há projecto do atelier de Óscar Niemeyer. Como pano de fundo, umas eleições regionais. Só que esta ilha não é a Madeira “despesista”: é São Miguel, nos Açores. Um dos projectos é promovido pelo governo regional (PS), o outro pela câmara de Ponta Delgada (PSD). Tudo em Portugal, no ocaso deste ano de 2011, o ano em que a troika chegou. Estarão a gozar connosco?

É fácil, é barato e acredita-se que dá milhões: vamos lá todos zurzir em Alberto João Jardim. Sobretudo agora, que o homem está atordoado pela descoberta de falta indisfarçável e de pecado imperdoável. Poupo por isso adjectivos, e não por falta de vontade ou receio de excessos: afinal, de uma das vezes que lhe desapertaram os cordões da bolsa (quando o governo de Guterres aprovou uma indecorosa alteração à lei das Finanças Regionais), chamei-lhe “tiranete do Funchal” e, por conta disso, respondi em tribunal (onde fui absolvido, devo sublinhar). E poupo os adjectivos porque temo os efeitos da distracção: é que enquanto se atiram pedras ao bobo da corte tende-se a esquecer outros vilões e a nem reparar noutros excessos. Como o dessa súbita paixão açoriana pela arte contemporânea.

A Madeira é uma ilha esburacada por um frenesim de obras públicas lançadas com o argumento de que gerariam, por milagre insondável, o desenvolvimento económico. Mas o Continente é, ao mesmo tempo, a região da Europa com mais autoestradas por habitante, vias rápidas onde só parecem circular os automobilistas que desejam fugir ao rosário de rotundas em que transformaram as antigas estradas nacionais. Por causa das omissões da Madeira tivemos de corrigir nalgumas décimas percentuais os défices do passado – por causa das autoestradas para lado nenhum teremos de acrescentar vários pontos aos défices futuros. Basta pensar que, ainda esta semana, soubemos que as Estradas de Portugal viram a sua dívida passar de 909 milhões em 2008 para 2000 milhões em 2010, devendo chegar aos 4256 milhões em 2015. São 500 milhões de dívida a mais todos os anos, e sem construir mais estradas novas, tudo fruto da engenharia financeira de José Sócrates e Mário Lino. É por isso que, apesar de não ser adepto de que se tratem em tribunais problemas que são políticos, nesta discussão estou mais com Medina Carreira: “Estamos com as baterias contra o dr. João Jardim (…), mas temos muita gente que à frente dele devia sentar-se no banco dos réus; as pessoas que puseram este País no estado em que está deveriam ser julgadas”, como ele disse na Figueira da Foz.

Se é difícil seguir o ritmo torrencial das declarações de Alberto João Jardim, vale a pena atentar no documento que produziu para demonstrar os bons resultados da sua governação. São cinco páginas de números, mas houve uns que me prenderam a atenção: os relativos ao rendimento per capita na região. Em 1990 este correspondia a 69 por cento da média nacional, hoje está nos 132 por cento. Poderíamos dar os parabéns aos madeirenses se não soubéssemos que este resultado foi, em grande parte, conseguido graças às transferências do Continente. O que levanta um problema: justificam-se essas transferências? (E justificam-se nos Açores, onde esse índice está nos 96 por cento, valor que contrasta com os 81 por cento da Região Norte?) É que, à custa da tese da “insularidade”, pagamos no Continente 23 por cento de IVA e, na Madeira, só se pagam 16 por cento. O IRS também é mais baixo, os combustíveis são mais baratos, há dispensa de taxa da RTP e, mesmo assim, os funcionários públicos beneficiam de um bónus salarial. (Nos Açores o regime fiscal é igualmente mais favorável e, este ano, foi a única região do país onde os funcionários do Estado não viram os seus salários diminuir). É por estas razões financeiras, e por todas as razões políticas do mundo, que divirjo radicalmente dos que dizem que não se pode pôr em causa o actual modelo de autonomia regional. Claro que pode pôr em causa. Mais: que se deve pôr em causa. (E que, de passagem, se deve esquecer de vez a mirabolante conversa da regionalização do Continente.)

Não deixa de ser curiosa a fúria de certos cristão-novos da prudência orçamental. É que são os mesmos que, no PS, no PCP e no Bloco, escarnecem da “obsessão do défice” e criticam a “tirania da dívida”. No entanto, como notou Pedro Pita Barros, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova, numa crónica no site “Dinheiro Vivo”, a situação na Madeira “não é mais do que o resultado das políticas por eles preconizadas – dar rédea solta à despesa pública que esta se multiplicará, e combater o desemprego através do emprego como funcionário público – esta foi a ‘receita’ para o crescimento da Madeira”. Depois de milhões e milhões em estradas, túneis, portos e subsídios a clubes de futebol e para o fogo-de-artifício, depois de uma generosidade sem fim na criação de emprego público, a Madeira só é comparativamente rica porque beneficiou das nossas transferências pois não gerou um modelo económico novo e mais vigoroso. Quando em Portugal as mesmas vozes pedem para se iludir o acordo com a troika e esquecer (ou aliviar) a austeridade, a lição mais importante da Madeira “é que a capacidade de gerar dívida pública (e a ir escondendo) não traz a prazo crescimento económico sustentado”, como escreveu Pita Barros. Exacto.

E já que estamos a debater modelos económicos, é bom ir aos clássicos e saber do que falamos. Ora aquilo de que falamos é de “um pobre simpatizante das correntes keynesianas” que defende que “são necessárias medidas anti-recessivas” para estimular a “procura efectiva” e aumentar o emprego, o que pode ser feito através de “despesas públicas que compensem a retracção do investimento privado”. As palavras são de Alberto João Jardim e lêem-se num elucidativo artigo que podemos encontrar no site do Governo Regional da Madeira: “Eu, keynesiano, me confesso”. Ora eu, que não sou keynesiano, temo que aqueles que agora se distraem com indignações serôdias esqueçam que há muito para fazer (sem ser apenas na Madeira) para repor o país na linha. Por essas e por outras é que sigo com inquietação as notícias sobre as hesitações em torno da ligação em alta-velocidade a Espanha. Mesmo com dinheiros da Europa, investimento público só se for sustentável. No Funchal ou no Poceirão.

Consta que o Presidente da República e o primeiro-ministro decidiram não pedir uma auditoria às contas da Madeira. É pena. Tal como foi pena não se ter feito uma auditoria aos deves e haveres da República quando este Governo tomou posse. Parece que se tem medo de destapar mais buracos e assim incomodar a troika e os mercados – o que infelizmente não deixaria de suceder. Lamento imenso. Lamento sobretudo pelo que isso revela de limitações à nossa soberania: conduziram o país a tal estado que até a verdade política e o apuramento de responsabilidades estão hoje a ser sacrificados. A Madeira, de novo, só nos vem recordar um problema bem maior.

Público, 23 Setembro 2011

Sem comentários: